por Quatermass
Nesta semana encerraram-se as
atividades da mais antiga loja de plastimodelismo do sul do Brasil. Sempre fico
reticente quando um comerciante alardeia estar a “tantos anos” em funcionamento
ou “desde 19...” Estou triste, pois nestes 25 anos aprendi muito sobre
plastimodelismo e criei grande ojeriza dos plastimodelistas. Junto com meu
amigo Luiz, da Livraria Aurora, a Hobbycraft era o segundo motivo para minhas
peregrinações ao centro de Porto Alegre. A Hobbycraft fechou não só porque os
tempos mudaram, mas, principalmente, porque os plastimodelistas não evoluíram.
Em meus 49 anos descobri o hobby no início dos anos 70, quando não havia
Internet, TV a cabo, nem videogame. Ao contrário, existiam quatro canais de TV aberta,
em preto e branco, um número reduzido de brinquedos, autoramas e ferromodelismo
carésimos, e os kits plásticos injetados e distribuídos pela Kikoler. Os moldes
eram oriundos da Revell americana.
Surgida no início dos anos 60 importando os
primeiros modelos em escala, a Kikoler cresceu em 10 anos, a ponto de estar
presente desde as grandes lojas de departamentos, como Mesbla, Hermes Macedo e
Lojas Americanas, até pequenos bazares e tabacarias. Em POA surge a Hobby
Brinquedos, também no centro, onde podiam ser encontrados kits importados da
Airfix, Monogram, Matchbox, Frog, Tamiya e outras.
O plastimodelismo
proporciona um efeito hipnótico: faz com que seu praticante sonhe. Sonhe em um
dia tirar as peças da caixa e montar; sonhe em montar um modelo realmente em
escala do avião, carro, navio, tanque, originais; sonhe em criar novos laços de
amizades com outros plastimodelistas. Mas a vida mostra que tudo são fases: são
momentos que surgem, são curtidos e depois acabam.
A vida mostra que sonhos têm
curta duração. Nunca esperei contar com ajuda ou orientação de outro
plastimodelista e ainda bem que assim pensei, pois nunca me decepcionei. E como
exemplo, cito um causo da própria Hobbycraft: surgida em meados de 1988 era do
conhecimento de grande parcela dos então plastimodelistas da época, mas sempre
que indagava o endereço, lá vinham as desculpas do gênero “sei onde fica, mas
não lembro o número, nem a rua”, “tinha anotado o telefone, mas esqueci em
casa”, “fulano já foi lá mas acho que não é naquele endereço”.
Realmente,
plastimodelista gaúcho é um grandessíssimo bundão: seu ego é maior que a
Amazônia, mas o resultado fica aquém do maternal. Certa feita, em 1993, fui
convidado a participar de uma exposição com distribuição de prêmios num cafofo do
centro, point da "magrinhagem balaqueira". Na véspera fui verificar o trabalho
dos competidores e vislumbrei, lado a lado, dois kits aparentemente em mesmo pé
de igualdade: ambos pintados a pincel, ambos eram aviões.
Mas não havia
paridade: o T-6 fora montado por um senhor cinquentão que frequentava a
"tchurma", o MiG-29 era de autoria desconhecida. Mas um detalhe me chamava a atenção:
a roda da bequilha do T-6 estava pintada em alumínio, quando deveria ser cor de
borracha; já o avião russo fora pintado honestamente (cada cor no seu devido
lugar). Já fiquei com pé atrás!
Não deu
outra! Após a realização do evento, compareci na loja e fiquei sabendo que o
T-6 ganhou o 1º lugar na categoria aviação; ao MiG-29, nada. Nada surpreendente
já que além de egocêntrico o plastimodelista dos pagos também é barraqueiro.
Mas meu queixo caiu quando apareceu o dono do MiG: na mesma hora chegaram dois
meninos e um deles falou: “fulano, vim pegar meu kit”. O guri pegou o avião e
cuidadosamente guardou em uma caixa, saindo do estabelecimento silenciosamente.
Nunca mais o vi no cafofo, na Hobbycraft, nem em qualquer outra loja. E este
fato sempre ficou em minha memória: a inexistência de uma nova geração de
plastimodelistas.
Já que a velharia se criou montando aviõezinhos injetados pela
teimosia de seu Arno Kikoler, por qual motivo uma criança hoje em dia se
meteria num hobby fechado, que exige conhecimentos em pesquisa, montagem, acabamento,
pintura e a necessidade de se entrosar com outros praticantes narcisistas,
quando existem videogames, legos, e muitos outros hobbies que não existiam há
cinquenta anos atrás? “Just a hobby. It’s a fun” não se aplica no Brasil. Lá
fora americanos, europeus e asiáticos levam a sério, o hobby cresceu, evoluiu,
mas não se esqueceram dos mais jovens: sempre há um lugar para novatos.
No
Brasil existe a geração Kikoler e pós-Kikoler. A primeira, começou montando
kits nacionais até o fechamento da Kikoler no início de 1990, e passou a
comprar kits importados, agora legalizados na era Collor; a segunda seria a geração
curiosa, a de vinte anos para cá, quando na casa de alguém, viu o kit montado,
achou legal, quis fazer igual, mas não sem empolga em investir em livros,
aerógrafos ou acessórios. O resultado é que com o tempo, a primeira geração vai
se indo, enquanto que a segunda, se entedia com a possibilidade de deixar de comprar
um Big Mac ou um Blue Ray para montar plástico.
Agora, vamos deixar de lado um
pouco este lado deprê e falar da Hobbycraft e do hobby. Apesar de não parecer, já
fui criança. Portanto, houve tempo que sonhava. Sonhava com a possibilidade de
ver montado um kit igual a uma pintura de Jack Leynnwood. Adorava montar um
avião 48 ou 72 vezes menor, sem me importar com opiniões. O melhor deste hobby
não é o produto acabado, mas o processo de montagem, as dificuldades, as
imperfeições e as necessárias correções, e a história que daí advém. A curtição
começava na loja: qual kit escolher, que tintas comprar, qual a
nacionalidade... um belo e adorável drama. Just a hobby. It’s a fun – “apenas
um hobby, isto é diversão” é a expressão perfeita para definir o sentimento de
um verdadeiro plastimodelista. Não é
para excluir, mas fazer amigos e curtir troca de experiências.
Este estado de
sentimentos somente havia encontrado na Hobbycraft. O Flávio é um sujeito super
acessível, até mesmo para um “mala” saudosista como eu. Não se nega a ensinar,
desde que o cara realmente esteja a fim
de aprender. Dono de um leque muito grande de ideais, fundou um museu,
incentivou o hobby como pode. De volta a 1988 estava eu atrás de uma loja
assim. Mas sabe como é... ninguém se lembrava do nome da loja, do telefone ou
do endereço, utilizando-se das desculpas mais descaradas e criativas do Rio
Grande. Mas foi num anúncio nos classificados da Zero Hora, que descobri o
local da Área 51 de Porto Alegre. Em outubro daquele ano entrei em contato com
um outro mundo. Não haviam discos voadores, nem Ets, melhor que isso: duas
prateleiras lotadas de publicações da Squadron e kits consignados.
A loja começou
junto a um escritório de arquitetura, quando no ano seguinte passou para uma
outra sala comercial na mesma Ramiro Barcelos. Em 1992, mudou-se do bairro
Bomfim para o Centro, mais precisamente numa galeria da Rua Demétrio Ribeiro, numa
loja maior para atender a demanda então crescente daquela década. Mas a entrada
do século 21 significou uma mudança gradual, ainda, que imperceptível de
tendência: a Hobbycraft já estava consolidada há mais de dez anos, era
conhecida nacionalmente, tanto pelos kits quanto pela representação no Brasil
da Squadron; mas, inexoravelmente, a Internet facilitou o acesso a e-books
gratuitos, compras no exterior e artigos em sites e blogs especializados. Se
por um lado facilitou a vida do praticante do hobby, pôs em desvantagem o
comerciante que paga impostos, aluguel, condomínio e faturas para manter seu
negócio.
Mais recentemente mudou-se para a Av. Borges de Medeiros, perto do
cinema Capitólio. Daí que, como cliente, passei a presenciar pessoas ingressando
na loja para perguntar se “tiravam xerox”, “se vendiam aeromodelos”, ou que
simplesmente passavam o tempo durante o horário de almoço perguntando preços de
todo o estoque ou que apenas queriam conhecer a loja ou, ainda, para gastar o
tempo em prosa, afirmando que há priscas eras montava kits Revell e que no dia seguinte
voltariam para levar o modelo.
Toda esta provação demonstra que um hobby
estimulado por um visionário no início dos anos sessenta morreu quando o Sr.
Arno Kikoler passou para um outro plano; o que se segue é um lento e inexorável
processo de agonia. Muitas lojas fecharam e chegou a vez da Hobbycraft. E
lamento duplamente, pela ausência de referencias e pelo fato de que mais uma
livraria se encerra em Porto Alegre.
O
brasileiro em geral e o gaúcho em especial é curioso: sempre alega que iria
comprar o livro ou a mercadoria recém vendida, mas não compra nenhuma outra;
chora quando um estabelecimento fecha suas portas dizendo desconhecer as
verdadeiras causas que motivaram este ato extremo; em suma, aparenta ser
detentor de grande humildade quando na verdade a abomina. E é por isso que
digo, pelo ¼ de século de perseverança do Flávio e sua loja: adeus e obrigado
pelos momentos inesquecíveis!