Tioguara
No início dos anos 80, a programação das rádios FM de Porto Alegre era um saco! As rádios Cidade e Atlântida dominavam, mas suas programações eram quase idênticas. E muito previsíveis, já que repetiam cerca de dez vezes por dia a mesma lista de umas vinte e poucas músicas! Fora disso, havia a Guaíba FM - com suas músicas de sala de espera - e umas duas ou três outras emissoras menos lembradas, como a Capital e a Bandeirantes, que passavam quase despercebidas. Para quem queria ouvir um som diferente, a solução estava nos velhos discos de vinil, muitas vezes emprestados pelos amigos ou copiados em fitas cassetes de qualidade sofrível. Era um estado de coisas que precisava mudar.
É nesse ponto que começa a história de uma dupla de jovens nerds - Tioguara e Gordo - que então tiveram a idéia de uma plano infalível. Uso essa expressão não porque a idéia fosse brilhante, mas porque estava mais para os "planos infalíveis" das histórias da Turma da Mônica, ou seja, tinha tudo para dar errado. O plano era "apenas" o seguinte: usando nossos rudimentares conhecimentos de eletrônica (que se resumiam à alguma leitura de revistas e montagem de alguns kits) eu e meu amigo Henrique colocaríamos no ar uma Rádio Pirata! E nesta rádio tocaríamos as músicas que muita gente gostava, mas que nunca tocavam no rádio, tipo o Pink Floyd, Led Zeppelin, Jethro Tull... E artistas ótimos , mas menos conhecidos, como o Mike Oldfield, que jamais tocariam nas rádios comuns! E, pra completar, colocaríamos a "boca no trombone" contra o sistema opressor, que queria determinar até o nosso gosto musical!
A idéia então era muito ousada, senão maluca. Na época rádios piratas não proliferavam como hoje – nem a música famosa do RPM tinha estourado ainda – e ainda estávamos sob o regime militar, embora em seus últimos momentos. Antes de colocar em prática a rádio, já sabíamos quem seria o nosso arqui-inimigo: o DENTEL (Departamento Nacional de Telecomunicações, eu acho), que era o órgão que fiscalizava a atuação das rádios e TVs naquele tempo.
Não tínhamos material nem dinheiro. Só a vontade e aquele "fio" de experiência, com os kits das revistas. Mas acreditem: meu amigo conseguiu montar um pequeno transmissor de FM. Só que o alcance dele era de apenas alguns metros... Daí que a rádio até poderia ser uma rádio comunitária, desde que a comunidade fosse limitada à casa do próprio radialista! Serviu como brinquedo.
Mas não desistimos. Continuamos com a pesquisa por um transmissor mais potente. Mas, enquanto nosso projeto “subversivo” era sucessivamente adiado - fosse pelo preço ou pela dificuldade em encontrar as peças necessárias - algo diferente surgia no dial do três-em-um da sala.
Como já contamos outras vezes aqui no blog, um fato que marcou a geração dos anos 80 em POA foi o surgimento da Ipanema FM, uma rádio com uma proposta diferente das demais na época: raramente tocava os sucessos do momento, mas dava prioridade aos alternativos e às bandas que a galera pedia, novas ou antigas. O locutor Mauro Borba conta os detalhes dessa história no seu livro Prezados Ouvintes.
Resumindo, em meados de 1983, a gurizada ganhou uma opção diferenciada de rádio, apesar de muitos terem demorado um bom tempo para perceber.
A programação abrangia uma diversidade que ia desde a MPB até o heavy metal, passando pelo classic rock, progressivo, new wave, reagge, tecno, punk... quase qualquer coisa. Na Ipanema de então era mais fácil ouvir o Lou Reed ou o Egberto Gismonti do que o Michael Jackson ou a Madonna. Claro que havia certa variação, dependendo do horário e do apresentador. Nessa época, meus programas favoritos eram o Hora do Rush, no final da tarde, com o Mauro Borba, e o Central Rock, com o Ricardo Barão (quando rolava o som pesado e as bandas clássicas, chamadas “as véias”), que inicialmente era restrito às noites de sábado.
Já fazia algum tempo que a Ipanema estava no ar e a rádio inclusive já apresentava novos locutores. Entre estes, havia uma radialista que se destacava pela voz bonita e pela criatividade: a Katia Suman. A Katia trouxe para a Ipanema, entre outras novidades, uma que era extraordinária: um programa chamado Clube do Ouvinte.
A proposta desse programa era tão democrática que era até difícil de acreditar que fosse mesmo verdade. Nas noites de terça-feira, a rádio cedia, gratuitamente, um espaço de duas horas (repito, duas horas!) para que um ouvinte (ou uma dupla) contasse a história e tocasse as principais músicas do músico ou banda favoritos. Isso numa rádio de alcance e audiência consideráveis, na capital do Estado! E o intrépido ouvinte assumia mesmo o microfone da emissora, com ou sem formação pra isso, "na raça"!
Esse programa foi incrível: ali ouvimos muita música boa e conhecemos bandas e artistas interessantes, histórias curiosas também.Agora, o mais fantástico - pelo menos pra mim, já que essa aventura faz parte da minha história pessoal - é que alguns meses depois, por incrível que pareça, Tioguara e Gordo estariam no ar com aquele programa!
Essa parte da história fica para daqui a alguns dias. Por enquanto, deixo dois clipes que representam diferentes tribos, sendo que todas se encontravam e faziam a festa naqueles 94.9 do rádio!