segunda-feira, 24 de março de 2008

KITS REVELL


por Quatermass



Natal de 1972. Período da ditadura militar. Cronologicamente, era quase pré-história, beirando o Período Cretáceo: sem Internet, DVDs, microcomputadores, videogames, etc. Tempos do “milagre econômico” e assistia-se os antigos seriados, filmes, novelas e desenhos ainda em preto-e-branco.


A vida era muito menos complicada, ao menos para mim. Tinha nove anos e minhas ambições eram mais singelas. Não ansiava com a democracia e questões sócio- político-ideológicas. Meu objetivo era outro e o alvo já estava delineado: o Bazar e Papelaria Louvre, na Av. Protásio Alves, defronte o Cinema Ritz.


Dentro estava meu objeto de desejo: uma Fortaleza Voadora B-17, na escala 1/72 (setenta e duas vezes menor que a original), exposta em meio a uma imensa prateleira cheia de caixas de kits plásticos para montar da marca Revell americana (mas injetada no Brasil pela Arno Kikoler).



A tampa da caixa era uma obra de arte, reprodução de uma pintura à óleo da Memphis Belle. E lá eu sonhava com aquele modelo de avião. Sempre que possível passava na loja e enchia o saco dos vendedores pedindo para olhar a caixa. Anotei tudo: modelo, fabricante, preço, mapa com a localização dentro do estabelecimento e endereço. Pronto! Agora, a vítima: meu pai.


Todo mundo tem suas manias e ele as dele: era sisudo e quietão, não prestava contas de absolutamente nada do que fazia, mas respeitava sua intimidade. Sempre curioso, dificilmente perguntava algo, ao invés, reparava. Sempre dava o presente certo sem que as pessoas pedissem. Mas eu era um guri chato que fazia questão de dizer em alto e bom tom que não gostava de ganhar cueca, meia e camiseta, e sim os modelos plásticos. Luta inglória: a parentada não tava nem aí e viviam me dando roupas!



Mas meu velho era diferente! Sabia do que eu gostava e mesmo indiretamente me deu força junto ao hobby. Certa vez, num aniversário de um daqueles “amiguinhos” do colégio, comprou um caça Mustang P-51 para eu dar de presente. Gozado, mas na hora, o raio do kit não queria sair da minha mão! Foi como se tivesse cola nos dedos!


Mas, voltando ao Natal, comecei a dar indiretas a ele e nada de retorno. Ouvia quieto. Já estava achando que iria ganhar roupas. Mas aguardei, pois silêncio não significa negação (às vezes é uma maneira mais inteligente de concordar). E na noite de Natal, lá tava eu, minha irmã, minhas primas, tias, etc, aguardando o Papai Noel trazer os presentes.


Óbvio que eu sabia que era mera tradição, mas como na sala ainda havia quem acreditasse, que continuasse o show! Papai Noel chegou, foi embora e deixou presentes. Oh!! Quanta surpresa! A gurizada toda se atirou para pegar o seu e eu já estava esperando um pacote todo molenga para segurar, quando vi uma caixa diferente: era retangular e estava propositalmente colocada num canto separada das demais.


Bastou fitar uma única vez para reconhecer o bendito kit. Que emoção! Ao abrir a caixa, não via a hora do pessoal jantar a ceia e se mandar para que me liberassem a mesa. Feito isso, comecei a montagem que durou a noite inteira (foi a primeira vez que virei a madrugada, a primeira de muitas).


De manhã, era o feliz detentor da mais bela B-17 do mundo: sem pintura, mas cheia de cola escorrida, marcas de dedos, decais tortos e tudo, mas absolutamente tudo colado (hélices, rodas e tudo mais que deveria se mover). A B-17 ainda durou alguns meses, antes do famigerado “dia da faxina” acabar com ela de vez. Ainda assim ficou a bonita recordação: do kit e a do meu velho.


Mas fica também uma lição: presente não é o mais caro, não é o raro nem o único; ao contrário, pode ser o simples, o trivial. Presente, principalmente, não é a coisa em sí, mas o ato espontâneo, a sensibilidade. É assim que perduram o amor, as amizades e o sentimento do filho para com seu pai.


1 comentários:

BudMayer disse...

Procurando por aí uma foto da B17, a mais famosa da II grande guerra, deparei com este blog. Li os documentários e me senti na mesma condição pois, tive um KIT Revell da mesma aeronave, destruída num acidente doméstico envolvendo a tal fachina.
Saudades daqueles dias em que ELA inteirinha, decorava a estante do meu quarto, sobressaindo dos outros kits montados, pelo seu tamanho.
Mas, gostaria de solicitar ao então amigo e saudoso, e que guardou a caixa da B-17 se, não teria o manual de instruções para montagem da Memphis Belle Revell? Pois no verso tem uma foto da tripulação que me traz muito boas recordações. A foto mostra o nariz e a tripulação da B-17. Lembro-me que depois que montei o kit, olhava para aquela foto como se olha para um heroi do passado eternizado pela magia da fotografia.
Caso tenha ou tenha a facilidade de obter tal "documento histórico", se puder enviar-me por e-mail, ficaria imensamente agradecido.
Te desejo sucesso em suas investidas e na oportunidade parabenizo-o pelo visual e conteúdo do BLOG. Ficou show.
Meu e-mail: arnaldo.maia.1957@gmail.com
Abraços e boa sorte no ano vindouro...

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