sábado, 29 de outubro de 2011

A Mboi-guaçu de São Miguel





Um conto de horror gótico no pampa gaúcho.




Autor: Luiz Carlos Barbosa Lessa.
Obra: Rodeio dos Ventos, de 1978.


* * *


Quem me falou da mboi-guaçu foi Sebastiana Gonçalves de Oliveira, mestiça guarani, 97 anos de idade, que em julho de 1951 ainda morava em seu rancho perto das ruínas de São Miguel, ex-capital das Missões.


Falou assim: “Já vejo que o senhor é um moço de tino. Outros muitos vêm por aqui, olham a igreja, sobem na torre, descem na escada escondida, mas não têm olhos para enxergar aquela massa preta, hoje dura que nem pedra, que escorreu do alto da escada. Mas o senhor não: viu. Viu e perguntou. Perguntou e eu conto. Se fosse para outro, não contava."


“Pois quando eu era pequena, minha mãe sempre me falava de coisas lindas do tempo em que São Miguel era cidade grande, com muita gente vivendo por aqui. Descrevia as procissões, as danças, os trabalhos de puxirão, a colheita de erva-mate com festas bonitas. Coisas que ela nunca viu, mas que ouviu dizer pela mãe dela, que era do tempo dos padres."


“Mas minha mãe contava que, quando os padres foram corridos, tudo isto se parou mui triste e abandonado. Quase todos os homens tinham sido recrutados para as guerras, de quando em quando apareciam soldados para reculutar também os guris já mais grandotes, e nas casas junto da igreja só tinham ficados as mulheres, com as crianças pequenas e um que outro velho já quase sem serventia. Entre a criançada estava a mãe da minha mãe, que é quem sabia do causo."


“Aqueles tempos foram mui brabos, porque era só femeeiro que vivia em São Miguel. Caçar, mulher não sabe. Laçar gado, também não. Cuidar da lavoura até a colheita, sim. Mas derrubar mato e escorraçar os tigres e outros bichos malevas, também não. Sem derrubar mato, plantação não tem. E em vez do mato ser vencido, foi ele quem foi vencendo: invadiu cidade adentro, entrou pelos restos de rua, subiu pelas paredes dos ranchos, foi botando tudo abaixo."





Então, buscando resguardo, as chinas levaram seus trastes, seus filhos, seus bichos de criação, para o interior da igreja. E todas ficaram morando lá, pensando que o mato nunca poderia bandear as paredes de São Miguel, que eram da largura dos braços abertos de um homem. Pensaram certo: pois o mato foi chegando, foi chegando, e ali parou"


"Durante o dia, as mulheres levavam seus filhos e os animais para os restos de lavoura, e ali ficavam trabalhando, ali comiam, ali descansavam o corpo quando a canseira era muita. E antes que noite descesse elas voltavam para a igreja, acendendo na porta um fogo grande. Tigre tem medo do fogo e assim não podia entrar."


"Não podia, mas tentava. Noite alta, era aquele desatino, das feras tenteando um jeito. Dentro da igreja, os cavalos sentiam o cheiro e, abrindo as ventas, farejando fundo, buscavam resguardo uns nos outros, uma hora arrodeando, outra hora se apertando, e já para o fim – tomados de medo e loucura – coiceando uns aos outros, cravando-se os dentes, rinchando de dor ou relinchando de fúria. Em torno, sem atinar com o perigo, uma que outra tambeira mugia triste, negando o leite aos terneiros.




Das torres abandonadas, desprendiam-se morcegos e, envoltos na confusão da tropilha, podiam saciar sua sede e fome com o sangue quente das desguaritadas crias. E ali, vendo tudo, olhos arregalados de medo, coração na boca, ali se encolhiam as chinas no fundo de seus catres, atarantadas, sem nada fazer, pois vivente mulher nunca soube lidar com os alimales, como os homens lidam. Só quando o sol apontava e os tigres iam-se embora, é que tudo serenava.


“A mboi-guaçu sempre tinha vivido no mato, sabendo que a morte a agarrava se chegasse ao campo limpo. Nunca antes, ela tinha vindo até os vargedos e lavouras, até os povos das Missões. Apenas os homens que penetravam sertão, a colher erva, é que contavam ter visto ela, com sua pele fininha e transparente deixando ver – lá nela – os bichos que comia inteiros quando a fome era mui forte. Pois então, desta feita, como o mato tivesse chegado à igreja de São Miguel, ela se veio, junto. E quando o mato, se agarrando em cipós, trepou parede acima, ela trepou também."


“Com a chegada da cobra grande, os morcegos e até os tigres fugiram de São Miguel. E depois deles, sem se poder atacar, fugiram também os cavalos e as tambeiras. Só ficaram ali as chinas com suas crias, embora tivessem entendido que era a cobra que ali estava – escondida nalgum canto... – pois que só da mboi-guaçu todos os bichos fugiam."


“Quando o mato, chegando ao alto, vingou numa das torres da igreja, a cobra ali se aninhou, moita e paciente. No dia em que o mato descesse pra dentro da sala grande, ela haveria de descer também, para engolir, de uma bocada, as chinas desarvoradas."


“Então, mais do que nunca, a sala grande da igreja foi a arma de defesa. Se mesmo o pasto era difícil de nascer ali, naquele chão pisoteado, muito menos cresceria o matagal, casa da cobra malvada."


“Mas o pasto não cresceu, nem o mato desceu.

“E a mboi-guaçu sentiu fome.

“Sentiu fome que crescia.


“Enraiveceu!"






“Enroscada nas cordas que pendiam do alto, atirou-se a badalar os sinos. Badalava! badalava! e o grito dos sinos entrava pelos ouvidos dos viventes para bater lá dentro, lá no fundo, chicoteando os nervos, como se uma tropilha inteira pisoteasse o pensamento, machucando o coração."





“Até que uma noite uma das chinas atentou para o mistério. Era decerto a mboi-guaçu que tinha fome. E essa china, que de tanto sofrer enlouquecera, pegou seu filho nos braços e lá subiu para a torre de onde o sino chamava. Ia subindo, em desatino, os degraus de pedra bruta, e quanto mais ela subia mais o sino se animava na doideira de seus gritos. “Quem é que chama meu filho?! Quem é que chama meu filho?! Não grite mais, já cheguei!”

“E então tudo se calou...


“Dois dias então se seguiram, num silêncio ainda mais louco do que os gritos tresloucados. Até quando a cobra grande ia ficar sossegada?

“E o sino recomeçou. Primeiro calmo, num choro... depois chorando mais forte... por fim gritando de novo.

“E outra china deu seu filho para aquietar a maldita...

“Assim foi, noites e noites. As pobres chinas, coitadas, não tinham para onde ir. E os sinos de São Miguel só paravam de gritar quando no alto da escada jogavam mais um anjinho para a faminta mboi-guaçu".


“Assim foi por muito tempo."

“Mas então a cobra grande, de tanto comer carne tenra, foi inchando, inchando muito, tanto engordou que estourou. E tão grande ela se achava, que a sua graxa - muito preta - inundou a torre toda, e depois veio caindo, se esparramando, pingando, desceu do alto da escada e nos degraus se grudou."

“Esta é a história que contava minha avó guarani.”


***


Luiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002) é um dos principais nomes do tradicionalismo gaúcho (movimento cívico-cultural que valoriza e preserva as tradições gauchescas do Rio Grande do Sul). Às vezes produzia obras de ficção, como este conto. Todavia, convém referir que são verídicos o local e o contexto histórico dos fatos narrados. Para saber mais, sugiro consultar os links ao final. Valeu!

Nota: As fotos das ruínas de São Miguel usadas neste post são de fotógrafos diversos, encontradas na internet e usadas neste blog sem fins comerciais.



Links:

Os Sete Povos das Missões

Barbosa Lessa (site oficial)

Glossario de Termos Gauchescos




Lembram do filme "A Missão", com Robert De Niro e Jeremy Irons? Seguem links com dois vídeos:









Encontrei também no You Tube o vídeo a seguir, que conta a história da Redução de São Miguel, bem feitinho. Recomendo.


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